As ameaças dos Estados Unidos contra a Venezuela continuam. A presença de navios militares no sul do Caribe ainda representa uma preocupação para o governo venezuelano, que tentou responder em diferentes frentes. A última delas foi um pedido de interferência da Organização das Nações Unidas (ONU) na tensão.
A relação entre Caracas e Washington, que historicamente é tensa, ficou ainda pior depois que o país estadunidense anunciou a movimentação de oito navios militares e um submarino para o sul do Caribe, com o suposto objetivo de combater o narcotráfico e acusou o presidente Nicolás Maduro de liderar um cartel de tráfico de drogas. O governo venezuelano mobilizou a população e foi à televisão denunciar as ameaças estadunidenses, passando a pedir ajuda internacional.
Na semana passada, o embaixador da Venezuela na ONU, Samuel Moncada, se reuniu com o secretário-geral da organização, António Guterres, e apresentou uma carta enviada por Maduro. O pedido era claro: que a organização tenha uma ação efetiva contra a ameaça militar dos EUA na região. Segundo o governo venezuelano, essa é uma tentativa de desestabilizar a região e trocar um governo que foi eleito.
No texto enviado pela presidência, a Venezuela denuncia as “ações hostis” dos EUA e pede o respeito à integridade territorial. Além disso, o governo venezuelano afirma que a ONU precisa pôr fim a esses deslocamentos militares representam uma “escalada” de “agressões” por parte dos Estados Unidos.
“Esta é uma operação de propaganda massiva para justificar o que os especialistas chamam de ação cinética, ou seja, uma intervenção militar em um país soberano e independente que não representa ameaça a ninguém”, disse Moncada durante a apresentação da carta.
A ONU, no entanto, não tem conseguido impedir ataques recentes contra países e evitar qualquer conflito militar. O exemplo mais recente são os ataques israelenses em Gaza. O Conselho de Segurança da organização demorou mais de um ano e meio para emitir uma resolução pedindo um cessar-fogo na região.
Para o professor de Economia Política da Universidade Bolivariana da Venezuela Reinaldo Tamaris, a tendência é que a ONU consiga emitir somente um comunicado ou uma resolução. Mas ele reforçou a importância de a Venezuela entrar com um pedido na organização, em respeito ao direito internacional.
“Historicamente, a ONU nunca conseguiu deter nenhum tipo de invasão desde a sua criação. Sobretudo por parte dos EUA, através do Conselho de Segurança. O caso da Palestina é um exemplo. Mas a Venezuela sempre foi respeitosa no direito internacional e, por isso, sua política exterior sempre foi de pedir o cumprimento do que está indicado na Carta das Nações Unidas. A Venezuela não pode deixar de dar esse passo”, disse ao Brasil de Fato.
Intimidação sem ação
Já se passaram duas semanas desde que foram anunciadas as movimentações no sul do Caribe. Até agora, os EUA não prometeram nenhuma incursão militar em território venezuelano. Por conta disso, o governo venezuelano tem adotado duas linhas narrativas. Primeiro de minimizar internamente a possibilidade de ataques na Venezuela e acalmar a população. Externamente, a estratégia é denunciar as ameaças e a “guerra psicológica” promovida por Washington, que tenta criar tensão no país.
O professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Roberto Goulart Menezes entende que os EUA tentam jogar com a oposição local e ver se há alguma faísca interna para, aí sim, tomar alguma medida mais enfática.
“Eu não descartaria uma desestabilização na Venezuela, sabendo que os Estados Unidos, nas últimas sete décadas, derrubaram muitos governos na região de diferentes formas. Nesse momento, essa pressão que Trump coloca sobre a Venezuela até pode resultar em algum tipo de ação direta, mas principalmente de apoio a grupos que venham atuar de dentro da própria Venezuela”, afirmou ao Brasil de Fato.
O governo venezuelano tem denunciado uma série de tentativas de desestabilização interna. Em agosto, as forças de segurança anunciaram ter desmobilizado uma nova tentativa de ataque contra estruturas estratégicas na Venezuela. O ministro do Interior, Diosdado Cabello, disse que as forças de segurança identificaram planos terroristas organizados por setores da extrema direita em conjunto com paramilitares.
Segundo ele, foram apreendidos explosivos que teriam a capacidade de atingir alvos a uma distância de até 1,2 quilômetro, que seriam usados para atacar hospitais, postos de gasolina e figuras políticas.
Neste sentido, Tamaris entende que a ação de paramilitares e de grupos de extrema direita dentro da Venezuela seria fundamental para qualquer ação dos EUA, mas que, neste momento, essa não é a realidade do país.
Brasil acompanha
Para o governo brasileiro, as ameaças dos EUA também representam um problema em diferentes frentes. Primeiro em uma questão migratória. O Brasil experimentou a entrada de milhares de venezuelanos que fugiam das sanções dos EUA e da crise econômica que isso promoveu no país vizinho.
Depois, um conflito militar na região também teria um custo político e econômico, já que isso prejudicaria uma série de rotas marítimas e aéreas na América do Sul.
O assessor especial da presidência para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, disse em reunião da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados que o governo acompanha com “preocupação” o movimento desses navios.
Menezes concorda que hoje a ONU é um instrumento pouco eficiente e que, na região, seria necessária uma atuação mais contundente da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac).
Ele entende que, mesmo com a relação desgastada entre Venezuela e Brasil, o país precisa observar com atenção essa movimentação.
“O governo defende, por princípio, uma América do Sul pacífica. Ainda mais um país que tem a importância da Venezuela e a extensão da fronteira que tem com o Brasil. Agora, nós sabemos que as relações estão estremecidas desde o segundo semestre, sobretudo da eleição de Maduro e do veto à entrada no Brics. Mas é claro que uma intervenção na Venezuela vai exigir uma energia política muito grande por parte do Brasil”, disse.
Outra preocupação importante do Brasil são os interesses dos Estados Unidos em recursos naturais. Em 2023, o atual presidente Donald Trump chegou a afirmar em um evento do Partido Republicano que se tivesse sido reeleito em 2021, teria “invadido” a Venezuela e “ficaria com todo o petróleo do país”.
Menezes entende que, para o Brasil, o problema é a presença dos EUA na Amazônia venezuelana, o que facilita o acesso a recursos que estão no Brasil. Ele também afirmou que os EUA incendiaram uma disputa entre Venezuela e Guiana pelo território do Essequibo. Os interesses também se dão pelas grandes reservas de petróleo na costa desse espaço em disputa.
“A questão problemática é que os Estados Unidos na Venezuela significa Estados Unidos na Amazônia. Então, sabemos que no governo anterior houve negociações até de oferta por parte da Guiana para colocar uma base militar no país. E o Brasil trabalhou contra isso. Trabalhou para tentar acalmar os ânimos entre Venezuela e a Guiana”, disse.
Apoio de vizinho
O país da região que foi mais enfático na defesa venezuelana foi a Colômbia. O presidente Gustavo Petro disse que uma ameaça contra a Venezuela representava uma ameaça contra toda a América Latina e afirmou que o Cartel dos Sóis é uma invenção dos EUA para justificar uma interferência na região.
Tamaris entende que as ameaças dos EUA têm reflexos em todos os países vizinhos, já que hoje há um rechaço até de países que não reconheceram a eleição de Nicolás Maduro no ano passado.
“Do ponto de vista geopolítico, há todo um movimento de países sobretudo da região que se posicionam contra essa suposta invasão e essa ameaça dos EUA. Há países que em algum momento não estiveram de acordo com as eleições de Maduro, mas que agora defendem a Venezuela. Vemos como Gustavo Petro na Colômbia tenta fazer pressão”, afirmou.
Para ele, a tentativa dos EUA é criar condições para que os países da Europa e Ásia vejam que os EUA têm poder sobre a América Latina, dentro de uma disputa com Rússia e China. Os dois principais rivais da Casa Branca têm na Venezuela a aliança mais forte no continente.
Desde a eleição de Hugo Chávez em 1998, o governo venezuelano deslocou o foco das suas parcerias para Moscou e Pequim. Investimentos petroleiros, financeiros, industriais, fortalecimento no comércio e até no turismo passaram a ser pauta das novas relações exteriores venezuelanas com russos e chineses.
Os ministros da Comunidade dos Países Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) se reuniram nesta segunda-feira (1º) para denunciar a presença dos navios. Em uma reunião emergencial virtual convocada pelo governo colombiano, o grupo de países reforçou que essa mobilização representa uma preocupação para toda a América Latina e pediu que as tropas estadunidenses deixem a região.
Para a Celac, a defesa da região como uma zona de paz não significa ignorar as diferenças entre os integrantes e nem minimizar a atuação do crime organizado na região. A ideia é ter uma metodologia de enfrentamento que foque nas instituições dos países e uma cooperação judicial e policial.