Lideranças da comunidade quilombola Vila Nova, de São José do Norte (RS), estiveram em Porto Alegre nesta quarta-feira (10) para o lançamento do “Protocolo de Consulta Livre, Prévia e Informada”, na Sala Redenção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). O documento, elaborado de forma coletiva, é o terceiro protocolo de uma comunidade quilombola no Rio Grande do Sul e foi apresentado em versão impressa e audiovisual, reforçando a oralidade como valor civilizatório das comunidades tradicionais. A exibição integrou o ciclo Cineciência: Raízes Vivas e Horizontes Ancestrais: A Terra é o Coração do Corpo?.
O quilombo Vila Nova é formado por 29 famílias, que vivem da pecuária familiar e da produção de arroz, cebola e outros alimentos, em processo de transição para a agroecologia. O território, banhado pela Lagoa dos Patos e pelo Oceano Atlântico (litoral médio), vem sendo pressionado por megaprojetos de mineração de titânio, como o Projeto Retiro, que pretende extrair ilmenita e rutilo na região, além de empreendimentos eólicos e monoculturas, como o Parque Eólico Bojuru.
Resposta à ameaça de um paraíso
“São José do Norte é um paraíso, mas hoje está ameaçado”, disse Geliandro Lucas Pinheiro, morador do território. “São empreendimentos que nos cercam, ameaçam a nossa água e querem destruir esse paraíso onde vivemos há gerações, que nos dá frutos, sustento e dignidade. O que está em jogo é o futuro”, alertou.
O protocolo busca garantir que a comunidade seja ouvida e tenha seu consentimento respeitado, conforme estipula a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) diante de grandes empreendimentos que afetam seu território. Como o Projeto Retiro, voltado à mineração de titânio, e outros projetos de geração de energia e monoculturas.
Liderança local, Flávio Machado reforçou que o protocolo é uma resposta direta a essa conjuntura. “Mesmo com um tratado internacional que diz que a gente precisa ser ouvido, isso geralmente não acontece. Não chegamos ontem neste território, estamos aqui há gerações, produzindo e preservando. Esse protocolo é uma ferramenta de defesa para garantir o nosso direito de ser ouvidos. Querem impor o discurso do progresso, mas nossa opção é permanecer, continuar produzindo alimentos de forma sustentável. Isso precisa ser respeitado.”
Segundo ele, a comunidade participou ativamente, colocando suas necessidades. “Esse protocolo não é só nosso. É de todas as comunidades quilombolas que enfrentam ameaças. Estamos juntos nessa luta, porque sem luta não se conquista nada”, pontuou.

Palavra que se escreve e se fala
O processo de elaboração foi construído de forma participativa, em oficinas realizadas no território, com apoio do Núcleo de Estudos de Geografia e Ambiente (Nega/Ufrgs), do Coletivo Catarse, do Fundo Casa Socioambiental e do Fundo Brasil. O protocolo foi produzido em versão textual e audiovisual, para garantir maior acessibilidade e difusão. A decisão está enraizada na tradição quilombola.
“O que assistimos não foi um documentário, foi o protocolo de consulta. A oralidade é um princípio das civilizações africanas, e o audiovisual respeita esse valor. É devolver à comunidade o documento no seu formato, de forma que todos possam compreender e se reconhecer”, explicou o jornalista Bruno Pedrotti , do Coletivo Catarse, responsável pela produção audiovisual.
Para a liderança da comunidade Vanuza Machado, o registro audiovisual reforça a memória e projeta novas possibilidades. “Por muito tempo o Estado nos negou até o direito à educação. Hoje nossos filhos estão dentro da universidade e isso mostra que somos capazes de ocupar todos os espaços. O filme é também uma forma de dizer: nós estamos aqui, temos história, temos futuro.”
Ela complementou, reforçando a importância da educação: “Tudo começa pela educação. Nossos filhos estudam, mas nunca devem esquecer de onde vieram. Somos agricultores filhos de quilombo e precisamos manter nossas raízes”.
A mestre em geografia Giulia Sichelero destacou o caráter audiovisual do protocolo, que vai além do papel para garantir que a comunidade se reconheça no documento e que seus direitos previstos pela Convenção 169 da OIT tenham aplicabilidade local. “São José do Norte é rico em biodiversidade, minerais e cultura. O protocolo traz a voz da comunidade, garantindo que tenham o direito de consentir frente aos empreendimentos.”
Modos de vida e bem viver em risco
A bióloga Júlia Ilha destacou que há pelo menos 16 empreendimentos eólicos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) previstos a menos de 8 km de comunidades quilombolas, muitas delas sem sequer saber da existência desses projetos.
Segundo ela, por estarem distantes da Capital e fora do alcance da visibilidade pública, essas comunidades ficam ainda mais vulneráveis, já que não contam com relatórios técnicos de identificação e delimitação (RTID) e nem com canais eficazes de denúncia. “Se quase nenhuma comunidade quilombola tem RTID, não faz sentido isso ser uma exigência para o processo de consulta. As comunidades correm o risco de perder seus modos de vida e o bem viver”, afirmou.
Ela também criticou o processo de licenciamento, citando o caso da mineração em São José do Norte. Em novembro de 2024, uma reunião pública reuniu pescadores, agricultores, quilombolas e moradores locais, que se manifestaram integralmente contra o projeto. “Nada foi levado em conta e logo depois saiu a licença de instalação”, disse.
Segundo a bióloga, o licenciamento tem se tornado um rito protocolar, sem garantir a participação popular. “É preciso repensar esse modelo, porque as comunidades correm o risco de perder seus modos de vida e o bem viver”, concluiu.

Críticas ao licenciamento
Segundo os quilombolas, os licenciamentos ambientais dos projetos previstos para a região apresentam falhas graves, ao ignorar o modo de vida da comunidade e os impactos sobre a pesca, a agricultura e o acesso à lagoa e ao mar.
“Estamos preocupados que a qualidade da água da Lagoa dos Patos e do Oceano Atlântico, que abastece nosso território, seja comprometida. A terra para nós agricultores tem um significado profundo: é a base da nossa sobrevivência, da produção de alimentos e do sustento da nossa comunidade”, comentou Pinheiro. Para o morador, as comunidades estão diante de dois caminhos: destruição ou preservação. “Precisamos continuar preservando para garantir um futuro melhor”, defendeu.
Apoio institucional e titulação pendente
O lançamento contou com representantes do Ministério Público Federal (MPF) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Ambos destacaram a importância do protocolo e reconheceram a urgência da titulação das terras quilombolas. O representante do Incra, Sebastião Henrique Santos Lima, destacou a força da mobilização e reconheceu a dívida histórica com o processo de regularização fundiária.
Ele lembrou que este é o terceiro protocolo do tipo no estado, após os do Quilombo do Morro Alto e Morada da Paz, e ressaltou a importância do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) para assegurar os territórios quilombolas frente a empreendimentos de mineração, energia e monocultivos. “Já são quase 20 anos de espera. Descontando os últimos dois governos, que não avançaram, são 13 anos de atraso. Nosso compromisso é concluir rapidamente o relatório técnico e garantir que ninguém coloque mão, pé ou árvore dentro do território da Vila Nova sem o consentimento da comunidade”, afirmou.
O dirigente enfatizou ainda que o papel do Incra não é negociar com empreendedores, mas atuar junto aos órgãos licenciadores. Também citou o apoio do Ministério Público Federal e destacou que cabe a órgãos como Ibama e Fepam considerar os impactos sobre quilombolas nos processos de licenciamento.
“Esse trabalho é fundamental. Ele conjuga a emoção e o acúmulo técnico. Se o empreendimento ameaça a continuidade digna da comunidade em seu território, pode-se exigir o consentimento, o poder de veto”, destacou o procurador do MPF, Pedro Nicolau. Segundo ele mesmo sem o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação concluído, a comunidade tem direito à consulta prévia. “Caso não seja respeitado, vamos acionar a Justiça Federal. O protocolo é um instrumento legítimo, que fortalece a posição da comunidade diante do Estado e das empresas”, afirmou.

Incra aponta avanços lentos na titulação de quilombos no RS
Ao Brasil de Fato RS, Sebastião Henrique Santos Lima informou que atualmente o RS conta com 160 comunidades quilombolas, das quais 136 já estão certificadas pela Fundação Cultural Palmares e 116 possuem processos abertos no Incra.
Apesar de alguns avanços, o número de territórios titulados ainda é baixo. Segundo o representante do Incra, já foram publicados mais de 20 Relatórios Técnicos de Delimitação (RTD), 14 portarias de reconhecimento e apenas quatro títulos de propriedade. “Isso está muito aquém da demanda”, admite.
Atualmente, o órgão trabalha na finalização de cinco novos relatórios técnicos e na conclusão de outros seis já iniciados. Mas Lima reconhece que os prazos da instituição não acompanham a urgência das comunidades. “A emergência não pode esperar o ritmo do Incra. O relógio do Incra não está batendo com a necessidade das comunidades”, afirmou, citando como exemplo a situação da comunidade quilombola Vila Nova, em São José do Norte, que teve seu processo acelerado em razão dos impactos de grandes empreendimentos.
O procedimento, ele explica, envolve a execução do relatório técnico, a publicação da portaria de reconhecimento e, em caso de áreas privadas, o decreto de desapropriação seguido da titulação. “Podemos também adotar medidas provisórias, como o reconhecimento da posse, antes mesmo do título definitivo, para garantir que não haja nenhum tipo de ameaça sobre o território”, destacou.
Esse mecanismo já foi utilizado no Quilombo Familia Silva, em Porto Alegre, há cerca de 15 anos, e está sendo discutido no caso do Quilombo Kedi, também na Capital. Como a área pertence ao município, o Incra não pode titular diretamente. “O que podemos fazer é reconhecer a posse, enquanto a prefeitura terá de aprovar uma lei na Câmara para transferir a área à comunidade”, explicou.
Segundo ele, há 41 cadastros da comunidade que querem ficar no local. “Nós vamos tentar garantir o maior território possível para eles”, assegurou.
Enquanto alguns territórios quilombolas sofrem com a especulação imobiliária, outros territórios enfrentam conflitos diretos com fazendeiros e impactos de empreendimentos. “Em São Gabriel, por exemplo, tocaram fogo na casa de uma quilombola. São situações em que o Incra precisa responder, mas infelizmente nem sempre consegue no tempo correto, e isso gera prejuízo às comunidades”, lamentou Lima.
Respeito à comunidade
Geliandro Lucas Pinheiro ressaltou a importância da terra para a sobrevivência das comunidades e para toda a sociedade. “É nela que colocamos a semente, que vira alimento, fruto, sustento. Esses alimentos chegam às feiras e mercados, produzidos com respeito ao meio ambiente, à natureza e à terra. Temos orgulho disso”, afirmou o morador.
Na mesma linha, Flávio Machado destacou a necessidade de respeito ao modo de vida quilombola. “Queremos continuar produzindo alimentos de qualidade, é nossa escolha. Mineração e parques solares não são para nós, mas para o capital internacional. Nossa vida, nosso trabalho e nossa saúde precisam ser respeitados”, disse a liderança.