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Jornal Bicicleta

Pobre São Paulo, pobre ciclista

Prefeitura criou estacionamento embaixo do Minhocão, tirando espaço da ciclovia e expulsando pessoas em situação de rua

No grupo de zap de cicloativistas Bicicletada, alguém bradou: “é, então a ciclovia não vai sumir. O que vamos fazer em relação a isso?” A zanga era por que eu antecipei no Instagram que naquela segunda-feira, 28 de março, havia máquinas e operários quebrando a calçada do canteiro central da rua Amaral Gurgel, debaixo do Minhocão, no bairro da República,  para instalar ali, entre as pistas que ligam zona leste à zona oeste, algumas vagas grátis de estacionamento para carros onde existe, desde 2015, o sentido bairro da ciclovia que se conecta às avenidas São João e Duque de Caxias.  

O fato gerou a convocação extraordinária do conhecido protesto de ciclistas que ocupam as ruas pedindo segurança toda última sexta-feira do mês, conhecido como Massa Crítica e que aconteceria na noite da terça-feira seguinte para alertar a população sobre essa perda para a mobilidade. Todavia, com a constatação de que a ciclovia continuaria existindo, o colega acreditava que não haveria mais sentido realizá-lo.

No entanto, a grossa maioria do grupo entendeu que, ainda que a ciclovia em si não tivesse sido retirada, mas redimensionada, os motivos por trás dessa decisão da prefeitura era usar o estacionamento como arquitetura hostil para afastar pessoas sem-teto que usam os baixos do Minhocão como moradia. Assim, a Bicicletada foi mantida, não apenas para reclamar dessa alteração no desenho viário para bicicletas, que certamente coloca a segurança de ciclistas em risco, mas também para denunciar mais uma violação nos direitos humanos pela administração Nunes.

Quem tomou a decisão de quebrar a calçada e fazer as vagas de carros  foi o vice-prefeito, Mello Araújo, que assumiu a prefeitura durante a viagem de Nunes à Ásia. A justificativa, é que seria um “experimento” para tentar desestimular o descarte irregular de lixo debaixo do elevado. Mas o lixo a que ele se refere, veladamente, não são os sacos de entulho, mas os sem-teto e o nome disso é aporofobia, o nojo e aversão a pobres. Desde que assumiram o segundo mandato, Nunes e Araújo intensificaram a perseguição às mais de 90 mil pessoas que moram nas ruas da cidade e que vêm sendo sistematicamente expulsas do centro por agentes da prefeitura com apoio maciço da Guarda Civil Metropolitana. Foi também contra isso que a Massa Crítica protestou. 

A ideia higienista do coronel vice-prefeito, um perfeito representante da extrema direita bolsonarista,  foi condenada por vereadores da oposição ao prefeito Ricardo Nunes (MDB). Nabil Bonduki e Luna Zarattini (PT), Renata Falzoni (PSB), Toninho Vespoli (Psol) foram lá gravar ver o que o que acontecia e gravaram vídeos para registrar o disparate de se fazer vagas de carros, contrariando inclusive toda a Política Nacional de Mobilidade, que exorta as cidades a diminuírem o número de carros de modo a combater o aquecimento global.

Como já venho denunciando neste espaço, a administração atual não dá a mínima para o transporte por bicicletas. Qualquer ciclovia ou ciclofaixa, existentes ou planejadas, correm o risco de sumirem ou ter sua implantação adiada em nome de outras intenções menos sustentáveis. No Plano de Metas da Cidade 2021-2024, constava o objetivo de construir 300 quilômetros de novas vias segregadas, mas foram construídas pouco mais de cinquenta. O cumprimento desta meta foi adiado para 2028. 

E não é só a direita que ataca a mobilidade ativa. No ano passado, a pedido do vereador Eliseu Gabriel, do mesmo partido da ciclista Falzoni (PSB), um trecho de ciclovia recém-implantada na avenida Mutinga, em Pirituba, foi sumariamente retirada.  Os comerciantes reclamaram e ele não teve dúvida em interceder. Com isso, foram R$ 268 mil reais gastos pela cidade jogados no lixo. Em substituição, a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) deixou lá uma “rota de bicicleta”, que é apenas uma pinturazinha no chão alertando que ali transitam ciclistas. 

E vale lembrar que esse mesmo vereador também é autor de um projeto de lei em tramitação na Câmara que concederá, caso aprovado, que comerciantes possam vetar novas estruturas cicloviárias e também retirar aquelas já existentes nas ruas onde mantêm negócios. É uma sandice que São Paulo, sob a gestão da extrema direita que não gosta nem de pobre, nem de ciclistas, também seja apoiada nos retrocessos por políticos que se assumem de esquerda. 

Caso o Ricardo Nunes resolva sair candidato a governador do estado, a cidade mais rica da América do Sul cairá nas mãos de um militar que foi para reserva da PM como coronel da Rota, a força policial mais letal da PM e que, como civil, possui no currículo de administrador da Central de Entrepostos Gerais de São Paulo (Ceagesp), nomeado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, o inelegível. Frequento o lugar há mais de 40 anos e atesto que Melo Araújo não fez nada de notável por lá. O local continua com a mesma dinâmica e aparência de sempre. É feio, ineficiente, inseguro, insalubre e não consegue sequer fazer um reaproveitamento das toneladas de alimentos jogados no lixão, todos os dias.

Pobre São Paulo por ter que suportar essa nova leva de “administradores” públicos sem nenhum compromisso em combater a miséria e o aquecimento global. Pobres de nós, que tentamos pedalar aqui. 

*Rogério Viduedo é jornalista de São Paulo e integrante do Programa de Jornalismo de Segurança Viária da Organização Mundial da Saúde. Cobre as áreas de segurança viária a mobilidade sustentável desde 2016. Em 2018, criou o site Jornal Bicicleta para cobrar autoridades por soluções eficientes para deslocamento da população. Recebeu o Prêmio Abraciclo em 2021 com a reportagem, “Cultura da bicicleta se aprende na escola”.

**Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.

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