Por Salete Maso *
No vibrante cenário do audiovisual brasileiro, o movimento quilombola ressurge não apenas como um símbolo histórico de resistência, mas como uma força pulsante de criatividade e de afirmação cultural dos profissionais negros. Este artigo explora como as políticas públicas podem tanto impulsionar quanto restringir o crescente e dinâmico setor do audiovisual negro, traçando um panorama detalhado dos desafios diversos e das conquistas recentes que moldam este cenário.
Políticas públicas: uma força de impulso e obstáculo
A “Carta do Audiovisual Negro às Candidaturas Antirracistas” da Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) não é apenas um documento, mas um guia essencial nas tortuosas trilhas das políticas públicas, oferecendo um roteiro para navegar em um ambiente complexo e em constante mudança. A expansão do ensino superior através de políticas de cotas raciais e a implementação de editais afirmativos destacam-se como conquistas significativas, abrindo portas e estimulando a presença de negros e indígenas no setor.
Contudo, o período entre 2016 e 2022, compreendeu marcos como:
- Governo Temer (2016-2018): durante este governo, houve instabilidade política e cortes em políticas culturais, afetando especialmente o financiamento de produções voltadas para grupos minoritários. Esse período foi caracterizado por um enfraquecimento do apoio institucional à diversidade cultural;
- Governo Bolsonaro (2019-2022): neste governo, assistiu-se a um desmonte mais acentuado das políticas de incentivo à cultura e à diversidade. Entre as ações, estavam cortes orçamentários significativos, a extinção de órgãos culturais importantes e nomeações políticas que não priorizavam a cultura, resultando em prejuízos para todo o setor cultural;
- Pandemia de covid-19 (a partir de 2020): a crise sanitária global agravou ainda mais a situação, interrompendo produções culturais, restringindo atividades presenciais e exacerbando desigualdades sociais e econômicas. Esses fatores contribuíram para fragilizar ainda mais o setor cultural, inclusive o audiovisual negro.
O período anteriormente apontado evidenciou retrocessos alarmantes devido à descontinuidade de políticas cruciais e aos impactos devastadores da pandemia, fragmentando as conquistas arduamente alcançadas e expondo a dependência crítica de diretrizes robustas, consistentes e de longo prazo.
Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc: um raio de esperança
Em meio aos desafios persistentes, as leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc surgiram como injeções financeiras vitais para um setor cultural severamente fragilizado. Apesar do seu potencial transformador inegável, sua implementação enfrenta obstáculos significativos, como a inabilidade em capacitar agentes locais para gerenciar e distribuir os recursos de forma eficaz.
Rafaela Vieira, cineasta e membro do GT de Políticas Públicas da Apan, ressalta que as leis são passos importantes na direção certa, mas demandam agentes públicos e privados devidamente preparados para garantir que os recursos beneficiem quem realmente precisa, evitando desvios e maximizando o impacto positivo. Um exemplo prático seria a criação de workshops e treinamentos para gestores culturais em municípios menores, ensinando-os a elaborar projetos competitivos e a prestar contas de forma transparente.
Ações dos quilombos: GTs da Apan
Os Grupos Temáticos (GTs) da Apan são vitais para a análise aprofundada e a proposição de soluções concretas para as barreiras múltiplas enfrentadas pela comunidade do audiovisual negro. Esses grupos dedicam-se a diversas frentes, desde promover políticas afirmativas e incentivar o desenvolvimento de empresas lideradas por negros até fiscalizar orçamentos e garantir a capacitação de jovens talentos.
1. Políticas Afirmativas e Empresas: luta incansável pela inclusão econômica efetiva de negros e indígenas no setor audiovisual, através de programas de mentoria, acesso a crédito e incentivos fiscais.
2. Orçamento e Gestão: monitoramento contínuo e transparente dos recursos e investimentos dentro do setor, garantindo que sejam alocados de forma justa e eficiente.
3. Formação: criação de oportunidades de formação e capacitação para jovens negros, desde cursos técnicos até bolsas de estudo em universidades renomadas, e ampliação das narrativas negras nas escolas, através da inclusão de filmes e documentários produzidos por negros no currículo escolar.
4. Difusão: fortalecimento da exibição de filmes negros nas salas públicas de cinema e em plataformas de streaming, garantindo maior visibilidade e acesso ao público.
5. Preservação: trabalhos de preservação e disseminação do acervo audiovisual negro, incluindo a digitalização de filmes antigos e a criação de um banco de dados acessível ao público.
Caminhando Para um Futuro Justo
Construir um futuro equitativo e próspero para o audiovisual negro requer ações contínuas, coordenadas e estruturadas, que vão além de medidas paliativas. As sugestões incluem:
- Fortalecimento das políticas afirmativas: ampla aplicação das cotas raciais em todas as etapas da produção audiovisual, desde a seleção de projetos até a contratação de profissionais, e criação de editais específicos para projetos liderados por negros e indígenas.
- Garantia de continuidade das políticas públicas: proteção legal contra descontinuidade ou retrocessos, assegurando que as políticas públicas sejam implementadas de forma consistente e sustentável ao longo do tempo.
- Capacitação dos agentes públicos: formação continuada sobre questões raciais, diversidade e ações afirmativas, garantindo que os agentes públicos estejam preparados para implementar as políticas de forma eficaz e sensível.
- Participação da sociedade civil: inclusão ativa da sociedade civil no controle social das políticas públicas, através da criação de conselhos consultivos e da realização de audiências públicas.
- Preservação do audiovisual negro: implementação de programas de digitalização e difusão dos acervos audiovisuais negros, garantindo que as histórias e as memórias da comunidade negra sejam preservadas e acessíveis às futuras gerações.
O audiovisual negro representa um quilombo moderno, um espaço de resistência, criatividade e inovação que demanda avanço contínuo através da implementação de políticas públicas adequadas, justas e eficazes.
Ministério da Cultura sob nova luz
A atuação do Ministério da Cultura, sob a gestão de Margareth Menezes, busca revitalizar o setor cultural brasileiro, com um foco especial na promoção da diversidade e da inclusão. As Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc, lançadas para mitigar os impactos devastadores da pandemia, são marcos dessa tentativa de reconstruir a economia criativa e assegurar a diversidade cultural, inclusive no setor de streaming, onde a presença de produções negras ainda é limitada.
A necessidade de focar nos profissionais negros, especialmente nas mulheres produtoras, que enfrentam desafios adicionais como a falta de oportunidades e invisibilidade de suas obras, é premente para equilibrar a representatividade e garantir que suas vozes sejam ouvidas. Estruturas de suporte e capacitação, como programas de mentoria, acesso a financiamento e workshops de desenvolvimento de projetos, são vitais para enfrentar desafios como o financiamento e a visibilidade dessas profissionais.
O compromisso com políticas inclusivas, a inovação em programas culturais e a valorização da diversidade são fundamentais para prosperar o audiovisual negro, garantindo que a rica história e as vibrantes vozes emergentes possam iluminar o cinema brasileiro de forma autêntica, igualitária e transformadora.
*Publicitária, jornalista e produtora audiovisual.