PANDEMIA

Como avança a vacinação contra a covid-19 na América Latina?

Maiores potências econômicas possuem mais doses, mas imunização é mais rápida em países menores

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |

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Dez países concentram 2/3 das vacinas produzidas em todo o mundo, enquanto 130 nações sequer tiveram acesso à primeira dose - ONU

A América Latina representa quase 27% das mortes no mundo por covid-19, no entanto, responde por apenas 7,2% das vacinas administradas, equivalente a 23 milhões de doses em um universo de 630 milhões de habitantes, de acordo com levantamento do site ‘Nosso Mundo em Dados’.

Chile, Argentina, México e Brasil concentram 90% das fórmulas já compradas na região, mas o ritmo de imunização é bastante diferente.

Alta demanda, concentração das fórmulas e falta de matéria-prima são alguns dos fatores que explicam os contrastes.

"São poucos países na América Latina que têm capacidade própria de produção", explica o médico da Rede de Médicos Populares, Aristóteles Cardona.

"Mesmo naqueles que têm, como México e Argentina, percebemos a falta de insumos farmacêuticos, que seria o princípio ativo das vacinas. Já em outros lugares falta seringa, porque a demanda mundial está muito alta”, relata.

Além disso, dez países concentram 2/3 das vacinas produzidas em todo o mundo, enquanto 130 nações sequer tiveram acesso à primeira dose. A reserva de mercado foi motivo de denúncia do México no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas.

“Não tem vacina no mundo. Há muito pouco, e ela está concentrada no mundo rico”, ressalta o jornalista e professor do curso de Relações Internacionais da UFABC, Gilberto Maringoni.

Em termos de imunização, o Chile lidera na América Latina, com mais de 4 milhões de vacinados, representando 21% da sua população.

O governo do conservador Sebastián Piñera iniciou a campanha de vacinação há mais de 80 dias, já o Brasil há cerca de 50 dias. A população chilena é onze vezes menor que a brasileira.

O Brasil, que acaba de trocar de ministro de saúde pela terceira vez durante a pandemia, imunizou cerca de 13 milhões de pessoas, o equivalente a 4,7% da população. 

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Além dos erros de logística na distribuição dos medicamentos no Brasil, um relatório do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, tornado público nesta semana, revela que o país exerceu pressão sob o governo brasileiro para rejeitar a fórmula russa.

“Não dá nem para culpar tanto as desigualdades com países mais ricos, porque o Brasil teria condições de comprar [a vacina]. No caso brasileiro, diferente de outros países na região, o maior problema foi a falta de interesse em comprar e promover a vacinação massiva da população brasileira”, destaca o médico Aristóteles Cardona.

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Brasil e Cuba são os únicos países da região com um sistema de saúde público e universal, com estruturas nos três níveis de complexidade de atendimento e capilarização no território nacional.

No caso brasileiro, o plano nacional de vacinação é ainda anterior ao SUS, foi criado na década de 1970, em plena ditadura militar, para combater a pandemia de meningite.

Em 2010, durante a pandemia do vírus H1N1, o Brasil foi capaz de vacinar 80 milhões de pessoas em apenas dois meses.

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Cuba é o único país da América Latina a desenvolver uma vacina própria contra a covid-19. / Minsap Cuba

“Acontece que quando Bolsonaro criou um quartel dentro do Ministério da Saúde, com Pazuello e seu grupo, ele tirou de postos-chave pessoas com experiência em logística para fazer uma campanha de imunização. O revés que isso teve faz parte da política do governo Bolsonaro. Os fatos são mais que evidentes de que está em marcha um governo de genocídio”, denuncia Maringoni.

Em nove meses de gestão, Pazuello colocou 21 militares em cargos estratégicos do ministério. Ao todo, a pasta possui 30 militares da ativa e da reserva, sendo a segunda com maior concentração de representantes das Forças Armadas.

Outro país que se destaca na região é a Argentina, que além de produzir a vacina da AstraZeneca, em conjunto com o México, desde agosto de 2020, também assinou um acordo com a Rússia para produzir a vacina Sputnik V em 2021. 

Até o momento, a nação possui cerca de 4 milhões de doses de distintos fornecedores, mas a expectativa para março era já ter recebido 19 milhões de doses.


O Chile lidera o ranking de imunização na América Latina, com quase 1/3 da população vacinada. / Claudio Reyes AFP

Vacina: um direito de todos?

O consórcio Covax – uma iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Aliança para a Vacinação (Gavi) e da Coalizão para Inovações em Preparação para Epidemias (Cepi) – é a alternativa para garantir o acesso do imunizante a todos os países, e de quebra acelerar o seu desenvolvimento e produção.

A perspectiva é oferecer, até o final do ano, 2 bilhões de doses, garantindo a imunização de 20% da população de cada um dos 190 membros do consórcio. 

Dos participantes, cinco países – Bolívia, El Salvador, Haiti, Honduras e Nicarágua – não pagarão pelas doses.

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A Colômbia foi o primeiro país latino-americano a receber doses da Covax no dia 1º de março. Seguida do Peru, El Salvador, Bolívia e Guatemala.

No entanto, assim como México e Argentina, outras nações denunciam a pouca efetividade do consórcio diante da ação das grandes potências.

“As empresas resolveram fazer dinheiro com a vacina. A solução para o mundo, é uma solução que passa por mais de 100 países na OMC, que seria quebrar as patentes, fazer um grande acordo global, em vista da catástrofe sanitária. Isso foi bloqueado pelos Estados Unidos e seus aliados. O Brasil se tornou, junto com os Estados Unidos, um caso de impedimento da democratização das fórmulas das vacinas”, analisa Maringoni.

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A circulação do vírus incentivada pelo governo Bolsonaro preocupa o mundo. Periódicos internacionais apontam para os perigos da intensa circulação da covid-19 no Brasil / Alex Pazuello/GovAM/Fotos Públicas

Novas cepas

O Uruguai foi o último país da América do Sul a começar a imunização e mostra como a situação é complexa.

Apesar de ter uma das menores taxas de letalidade por coronavírus e uma média de cinco cidadãos vacinados a cada 100 habitantes, o país teve um aumento exponencial no número de novos contágios nas últimas semanas com a volta às aulas presenciais, de acordo com levantamento de dados da Universidade Johns Hopkins.

A lentidão na imunização também abre brecha para o surgimento de novas variantes do vírus sars-cov2 mais resistentes e mais contagiosas, como é o caso da P1, conhecida como “cepa brasileira”.

Até o momento, todas as novas variantes do vírus podem ser tratadas com as vacinas já desenvolvidas. O risco é o possível surgimento de uma versão resistente às fórmulas já fabricadas, o que poderia gerar mais mortes e alongar ainda mais o período de emergência sanitária global.

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“Sem dúvida nenhuma, esse talvez seja o maior risco que enfrentamos hoje. Por isso não dá pra apostar somente na vacina da forma como está sendo feita agora. A vacinação é uma questão coletiva, não é individual. Um país que vacina bastante sai na frente, porque estará protegido agora, mas se não tivermos uma solução global, eficiente, nossos problemas poderão ser maiores no futuro”, conclui o médico Aristóteles Cardona.

Edição: Poliana Dallabrida