Agenda no Kremlin

Putin recebe Bolsonaro por protagonismo internacional e cálculo diplomático

Enquanto protagoniza embate com os EUA e Otan, presidente russo teve movimentada agenda nas útlimas semanas

Rio de Janeiro (RJ) |

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Jair Bolsonaro e Vladimir Putin em Moscou - Kremlin

O presidente Jair Bolsonaro (PL) se reuniu com seu homólogo russo, Vladimir Putin, nesta quarta-feira (16) em visita oficial a Moscou. A viagem foi marcada por controvérsia e pressão dos EUA sobre o Brasil em meio à crise entre a Rússia e o Ocidente em torno da fronteira ucraniana. 

A reunião foi centrada em assuntos como a coordenação da política externa em plataformas multilaterais, principalmente na ONU e em seu Conselho de Segurança, no qual o Brasil participa em 2022-2023, bem como no BRICS e no G20.

Bolsonaro declarou que sua visita a Moscou é um sinal para o mundo inteiro de que as relações bilaterais entre Brasil e Rússia têm boas perspectivas. Putin, por sua vez, destacou que o Brasil é o principal parceiro comercial e econômico da Rússia na América Latina e defendeu a candidatura do Brasil a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Risco diplomático?

Os preparativos da viagem foram marcados pela pressão dos Estados Unidos pelo cancelamento da agenda, em uma tentativa de isolar a Rússia diante da crise diplomática em meio à escalada da tensão na Ucrânia.  

Ao comentar o possível desgaste diplomático que o Brasil poderia ter com a visita à Rússia na atual conjuntura, o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Fernando Brancoli destacou que o objetivo principal de Bolsonaro com a viagem é demonstrar uma agenda positiva no cenário internacional, considerando que atualmente o presidente brasileiro se encontra isolado no mundo.

Brancoli lembra que nos últimos meses Bolsonaro se indispôs com uma série de lideranças, tanto na Europa quanto nos próprios EUA. Ao mesmo tempo, o ex-presidente Lula (PT) foi recebido com honraria de chefe de Estado na Europa em novembro do ano passado, enquanto Bolsonaro recebia críticas pesadas por sua administração da Amazônia e do aumento das queimadas durante a COP26.

Desta forma, a Rússia aparece com um dos poucos países relevantes no cenário internacional dispostos a receber o mandatário brasileiro.


Trocas comerciais entre Brasil e Rússia são marcadas pelo agronegócio / Mayara Kise/ Brasil de Fato

“Claro que quando a viagem foi marcada e planejada já há meses, não se tinha expectativa de uma crise desse tamanho com a Ucrânia, mas Bolsonaro resolveu não cancelar e realiza o encontro com Putin em parte para reforçar essa dinâmica de que o Brasil ainda seria um país relevante dentro do sistema internacional”, argumenta.

A relação com a Europa "já estava completamente deteriorada" e Bolsonaro "tinha muito pouco a perder no final das contas", diz o pesquisador.

Objetivos de Putin com Bolsonaro

O professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, por sua vez, afirma ao Brasil de Fato que, diante da tensão diplomática com o Ocidente, para a Rússia também é importante demonstrar que o país não está isolado e cumpre uma intensa agenda de visitas oficiais, lembrando que nas últimas semanas Vladimir Putin se reuniu com líderes da Argentina, Alemanha, França e anteriormente foi recebido por Xi Jinping na abertura das Olimpíadas de Inverno em Pequim.

Durante a declaração conjunta de Putin e Bolsonaro após a reunião bilateral, o líder russo destacou que os dois países possuem uma parceria estratégica importante, com uma ativa interação no âmbito do grupo Brics, G20 e e na ONU.

Segundo Jeifets, o maior objetivo da Rússia é conduzir a interação com o Brasil de tal forma que o presidente Bolsonaro não desestabilize o avanço do grupo Brics como uma plataforma para promover o multilateralismo no mundo.

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O especialista em estudos da América Latina da Universidade de São Petersburgo lembra que a Rússia sempre destacou o Brasil como um sério parceiro econômico e geopolítico, mantendo uma intensa relação nos governos petistas, principalmente. O presidente Bolsonaro, no entanto, praticamente não falou da Rússia no primeiro ano de sua presidência e manteve interações restritas a encontros multilaterais.

“O maior objetivo da Rússia é fazer de tal forma que, mesmo que não haja um movimento de avanço do Brics, que o presidente Bolsonaro não desestabilize nada neste sentido, que se chegue tranquilamente nas próximas eleições, não faça movimentos bruscos na direção dos EUA, por exemplo, e que, com o próximo presidente do Brasil, seja quem for, a relação com o Brics possa se desenvolver de outra forma. Neste sentido, a reunião é importante”, argumenta.


Além de encontro com Putin, agenda de Bolsonaro na Rússia inclui reunião com empresários e representantes da Duma / Kremlin

Captura da ausência de conflito na Ucrânia

Apesar dos alardes das autoridades norte-americanas de que Moscou poderia realizar um ataque contra o território ucraniano nesta semana, o que se viu foi um aceno diplomático para a crise com o começo da retirada de parte das tropas russas da fronteira com a Ucrânia a partir da terça-feira (15). Desta forma, a agenda bilateral russo-brasileira teve um caráter mais protocolar e não abordou temas relacionados à segurança no Leste europeu.

No entanto, membros da base do presidente espalharam nas redes sociais mensagens falsas dizendo que a ida de Bolsonaro à Rússia teria tido um papel na atenuação da agressividade na fronteira da Ucrânia.

Para o professor Fernando Brancoli, por mais que a associação da viagem de Bolsonaro com a melhora da crise no Leste europeu soe como “estapafúrdia” e sem sentido, isto representa efetivamente “uma captura de uma crise internacional que não tinha nada a ver com o Brasil, que não tinha nada a ver com Bolsonaro”.

“Ele [Bolsonaro] entra um pouco nessa história por causa do timing da visita, e consegue gerar um fato positivo, pelo menos para parte do seu eleitorado, consegue gerar uma agenda positiva, gera esse burburinho [...] enquanto a gente não está obviamente falando da pouquíssima cobertura vacinal de crianças para a COVID-19, do aumento da inflação, etc.”, observa Brancoli.

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Assim, de acordo com o pesquisador, a viagem de Bolsonaro à Rússia tem, no fundo, uma agenda eleitoral, e será constantemente retomada como um trunfo político no plano internacional, com uma crise que Bolsonaro “supostamente ajudou a solucionar”. “Definitivamente não tem nada a ver com ele, mas nesse campo político o discurso às vezes vale mais do que o que efetivamente aconteceu”, completa. 

Perspectivas da Rússia para as eleições no Brasil

Ao avaliar a indefinição do cenário político brasileiro, Jeifets comenta que a visita de Bolsonaro não deixa de ser uma oportunidade para a Rússia “tentar entender o que virá pela frente no Brasil, com o que a Rússia pode contar no futuro”.

De acordo com ele, a figura política de Bolsonaro se conecta com o presidente russo, Vladimir Putin, na visão conservadora da sociedade. O próprio presidente brasileiro, durante a declaração conjunta com o colega russo nesta quarta-feira (16), fez questão de mencionar a defesa que ambos fazem de valores tradicionais ligados à Deus e à família.

No entanto, o pesquisador destaca que a política externa russa tende a ser mais orientada por um pragmatismo e não por questões ideológicas, lembrando que o conservadorismo de Bolsonaro durante boa parte de seu governo foi mais direcionado para um alinhamento com a administração norte-americana de Donald Trump.

Por isso, tendo em vista as atuais pesquisas de intenção de voto no Brasil, que colocam o ex-presidente Lula na frente da corrida presidencial, Jeifets afirma que a Rússia avaliaria positivamente a volta do candidato petista ao poder.

Segundo o pesquisador, “Lula demonstrou maiores capacidades de estabelecer alianças do que Dilma, à direita e à esquerda, e estabeleceu relações mais sólidas com muitos partidos sem nenhum perfil de esquerda”.

“Eu acho que o conservadorismo pessoal de Putin não atrapalha em nada estabelecer relações com os outros, inclusive porque outros parceiros da Rússia na América Latina não têm um perfil conservador [...] Por isso, dependendo do país, o vetor da política externa da Rússia na América Latina pode mudar”, completa.

Edição: Thales Schmidt