PDVSA-Cripto

Qual a relação do bloqueio com as suspeitas de corrupção na estatal petroleira da Venezuela

Para contornar sanções da Casa Branca, PDVSA adotou práticas que podem ter sido exploradas para desviar recursos

Caracas (Venezuela) |

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Suspeitas do MP é de desvio de recursos da PDVSA, a estatal petroleira venezuelana - Miguel Zambrano/AFP

Em uma operação que envolve o Ministério Público e a Polícia Anticorrupção, a Venezuela iniciou nas últimas semanas uma investigação contra supostos casos de corrupção na empresa estatal petroleira do país, a PDVSA. Até esta quinta-feira (30), as autoridades haviam detido 21 pessoas e emitido outras 11 ordens de prisão.

Entre os detidos, estão 10 funcionários públicos - diretores da petroleira e de outros órgãos estatais - e 11 empresários, acusados de desvio de recursos públicos, lavagem de dinheiro e tráfico de influência. O caso também motivou a renúncia do agora ex-ministro do Petróleo Tarek El Aissami

Segundo o procurador-geral da República, Tarek William Saab, o esquema consistia em desviar valores provenientes de pagamentos de cargas petroleiras da PDVSA que eram convertidos em criptomoedas para, em seguida, serem lavados por uma rede de empresários na compra de bens e, principalmente, investimentos no setor imobiliário. Nem o MP, nem a polícia divulgaram o montante total ou parcial que teria sido desviado da empresa.

Cientistas políticos ouvidos pelo Brasil de Fato argumentam que a versão apresentada pelo MP é plausível e que o suposto esquema teria se beneficiado de brechas criadas no comércio petroleiro pelo bloqueio econômico imposto pelos EUA.

"Depois do ano de 2019, quando as sanções contra a PDVSA se agudizam, a empresa teve que construir redes de comercialização distintas das habituais", explica William Serafino, cientista político da Universidade Central da Venezuela (UCV).

Segundo o pesquisador, as consequências das medidas coercitivas impostas por Washington, como as proibições de realizar e receber pagamentos em sistemas financeiros estadunidenses e europeus, obrigaram a estatal venezuelana a construir "redes informais, baseadas em triangulações, e outras estratégias de transporte de insumos petroleiros porque os canais tradicionais estão bloqueados".

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"Isso pode ter gerado um incentivo para esquemas de corrupção desse tipo? Sem dúvida nenhuma. Isso explica que exista corrupção na indústria petroleira? Não em sua totalidade", afirma.

As hipóteses do pesquisador estão em sintonia com as suspeitas do MP. Em declarações oferecidas no último sábado (25), o procurador-geral venezuelano afirmou que as investigações indicam a existência de "uma rede de funcionários que, valendo-se de seus cargos e de seus níveis de autoridade, executaram operações petroleiras paralelas [...] às operações da PDVSA".

"Isso foi feito através de entradas na Sunacrip [Superintendência de Criptoativos] especificamente com cargas de petróleo em navios por parte dessa empresa estatal [PDVSA], sem nenhum tipo de controle administrativo nem garantias, descumprindo normas de contratação para tais fins", afirmou Saab.

O cientista político William Serafino destaca que, uma vez que a empresa foi obrigada a envolver intermediários em várias fases do processo de exportação de petróleo, se criou um risco de que os pagamentos sejam desvinculados das cargas e acabem não retornando aos cofres da PDVSA.

"Se, por um lado, existe esse cenário no qual as redes comercialização têm que ser alteradas permanentemente e não existe uma comercialização simples, entre ponto A e ponto B, e se, por outro, existem redes interessadas em captar essa renda petroleira para uso pessoal, existe uma realidade que converge a essas suspeitas de corrupção", diz.

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O pesquisador ainda acredita que "devem ser criados novos mecanismos de controle que não existiam antes do bloqueio", principalmente na última etapa das negociações, que envolve os canais de pagamento e repasses da renda petroleira.

"Parece que as suspeitas dessa trama recaem sobre a última etapa, de repatriação dos recursos, e por isso também se está vinculando a Sunacrip com o tema de criptoativos porque, segundo o próprio procurador-geral, elas poderiam ter sido utilizadas para lavar esse dinheiro", afirma.

PDVSA-Cripto: o envolvimento de ativos digitais 

Criada em 2018 por decisão do governo de Nicolás Maduro, a Sunacrip atua como uma entidade reguladora e promotora do comércio de criptomoedas na Venezuela. O órgão, segundo o MP, foi utilizado no esquema de corrupção, cuja função seria mediar a conversão em criptomoedas de fundos desviados da PDVSA.

As suspeitas levaram à prisão do agora ex-diretor da Sunacrip, Joselit Ramírez, que foi exonerado do cargo pelo presidente venezuelano. Além disso, a entidade iniciou um processo de reformulação que envolve quadros internos e o setor privado de criptomoedas na Venezuela. Segundo a agência Bloomberg, diversas contas em bolívares e em dólares de corretoras de criptoativos foram congeladas no início da semana.

De acordo com o MP, a rede de funcionários ligada ao esquema de desvio de recursos da PDVSA teria recorrido à compra de moedas digitais para esconder que os fundos eram provenientes de negociações petroleiras.

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Ao Brasil de Fato, o cientista político Luis Javier Ruiz, pesquisador da Universidade de Los Andes, explica que os obstáculos criados pelo bloqueio imposto pelos EUA à indústria petroleira venezuelana criou brechas para que negociações petroleiras também envolvessem criptomoedas.

"Motivada pelas sanções, a Venezuela teve que buscar outros métodos para operar internacionalmente e evitar que os organismos financeiros apreendam ou congelem fundos de alguma atividade que tenha a ver com o Estado venezuelano. É nesse contexto que ocorrem algumas situações que classificamos como 'operações sobre caminhos verdes', rotas administrativas e financeiras onde se deve romper com o habitual para poder fazer negócios em um cenário de perseguição financeira", afirma. 

Para o pesquisador, "isso não explica que alguém esteja envolvido em operações de corrupção, mas é nesse contexto que certos funcionários do Estado venezuelano operam".

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Apesar de considerar possível que algumas negociações sejam feitas através de moedas digitais, Ruiz afirma que "não são todas as empresas petroleiras internacionais que se arriscariam a fazer essas negociações, porque esses ativos seriam ilegais nos EUA e na Europa se fossem rastreados, principalmente por se tratar de cooperação com um Estado que tenta driblar sanções, seria um risco político muito alto". 

A hipótese mais factível, segundo o pesquisador, seria o envolvimento pessoal de agentes supostamente corruptos na compra de moedas digitais. "Eu acredito que a maioria dessas operações foram feitas em dinheiro vivo e, posteriormente, se houve algum esquema de algum grupo de funcionários que tentou utilizar o dinheiro público da PVDSA para roubar ou para algum esquema de corrupção, esse grupo tentaria ocultar esse dinheiro comprando criptomoedas de maneira pessoal", diz.

Consequências econômicas e políticas

As investigações estremeceram o mundo político venezuelano, já que o alvo das operações é a maior empresa estatal do país e a principal fonte de divisas da Venezuela. Nos últimos meses, a PDVSA vinha passando por um processo de recuperação produtiva, havia aumentado sua produção de barris diários e assinado um novo convênio com a Chevron após os EUA aliviarem as sanções sobre as operações da gigante energética no país.

Os recursos provenientes da reativação petroleira, além disso, serviram para que o Banco Central empreendesse um plano de intervenção cambial que, embora criticado por muitos economistas, permitiu certa estabilidade no preço do dólar no primeiro semestre de 2022 e nos três primeiros meses de 2023.

Para Serafino, esse cenário de recuperação pode estar ameaçado pelas suspeitas de corrupção na PDVSA. "O governo vem de um ano relativamente exitoso nos setores econômico, político e geopolítico, no sentido de que a autoridade de Maduro no governo se afiançou e vimos o retorno da Venezuela em vários espaços de diálogo multilaterais. Com essas suspeitas de corrupção, o governo poderia perder as bases materiais que permitiram que ele constituísse esse capital político para a recuperação econômica e é aí que está o elemento de maior perigo: que a ausência de recursos pelo dano patrimonial que pode ter ocorrido tire do governo o poder de fogo para seguir administrando a economia e gere perda de capital político", aponta.

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A imagem pública do governo também corre riscos de se desgastar. Apesar de apoiar as investigações desde o início e convocar manifestações contra a corrupção na estatal petroleira, Maduro já vinha sendo pressionado para que controlasse a inflação e aumentasse o salário mínimo, que perdeu capacidade de compra ao longo do último ano. 

Para Luis Javier Ruiz, a postura do governo desde os primeiros dias de operações gera um efeito positivo e transmite a imagem de combate à corrupção. No entanto, o pesquisador alerta que as demandas sociais podem ganhar força com as investigações.

"O Estado já disse que, por consequência do bloqueio, não tem condições atualmente de resolver alguns problemas, entre eles, o aumento de salários. De repente, explode um mega-caso de corrupção, sobre o qual se especula cifras astronômicas de dinheiro, e os trabalhadores se perguntam: 'Se não havia dinheiro, então como roubaram esse dinheiro?' Isso obviamente traz um impacto negativo sobre o governo", afirma.

Edição: Thales Schmidt