Criado em 1990, em Goiânia, e presente hoje em cerca de 20 estados e mais de 20 municípios gaúchos, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM) celebrou no último domingo (31) seus 35 anos com um festival cultural da reforma urbana na Praça dos Açorianos, na Ponte de Pedra, em Porto Alegre. A programação contou com apresentações do Bloco da Laje, A Figa, Preto X, Bloco do Chiquinho dos Anjos e DJ Fonk69. O festival ocorreu logo após o encerramento da 6ª Conferência Estadual das Cidades, realizada entre 29 e 31 de agosto, etapa preparatória para a Conferência Nacional das Cidades, prevista para outubro.
A coordenadora do MNLM Ceniriani Vargas da Silva (Ni) destacou a importância do encontro. “Hoje é um dia de celebração. Aproveitamos a mobilização do nosso povo do Interior, que veio a Porto Alegre para a conferência, e realizamos este grande evento dos 35 anos.”
Ela lembrou que a trajetória do movimento no Rio Grande do Sul se confunde com a história de Beto Aguiar, liderança da Restinga e um dos fundadores da organização. “O Beto rodava o país levando nossa bandeira, mesmo enfrentando 20 anos de luta contra o câncer. Ele foi fundamental para consolidar o MNLM, que ajudou a construir políticas públicas de habitação. Hoje, milhares de famílias têm outra realidade graças a essa história de resistência.”
A memória de Beto também foi lembrada pelo filho, o músico Ernesto Kovaski de Aguiar, morador da Restinga. “Cresci acompanhando muitas lutas do meu pai. Minha luta hoje se traduz na música, que é de resistência, acredita na pluralidade e na democracia. Morar na Restinga há 36 anos me fez aprender a viver com empatia e a transmitir isso na minha arte.”
Para ele, o direito à moradia é central: “Sem esse direito básico, a pessoa não tem condições de caminhar para outros lados. Ter uma cama, o afeto do lar… a moradia é essencial”.

Luta, conquistas e desafios
O dirigente nacional Cristiano Schumacher avaliou que o MNLM atravessou três gerações de lideranças. “O movimento nasceu de pessoas simples, que começaram fazendo assembleias em suas comunidades. São 35 anos de luta direta, de ocupações, protestos e construção de poder popular. Ao mesmo tempo, ocupamos espaços institucionais, fortalecendo a democracia participativa.”
Schumacher também reforçou a importância da campanha pelo despejo zero. “Essa luta é internacional e ganhou ainda mais força durante a pandemia. Hoje, com decisão do STF, o direito à moradia é reconhecido como fundamental. Quem sofre ameaça de despejo tem instrumentos jurídicos para se defender.”
Em 2024, a Fundação João Pinheiro (FJP) estimou o déficit habitacional brasileiro em 5,9 milhões de domicílios, sendo 737 mil na região Sul. Em 2023, Porto Alegre enfrentava um déficit significativo, com cerca de 32 mil pessoas sem moradia adequada. As enchentes de maio de 2024 agravaram a situação, deixando quase 160 mil pessoas desabrigadas na cidade. Embora mais de um ano tenha se passado, não há atualizações recentes sobre o número exato de pessoas em situação de vulnerabilidade habitacional.
Gabriel Henrique Macedo de Araújo, da coordenação nacional, destacou que o aniversário coincide com a retomada do debate urbano: “O MNLM completa 35 anos retomando as conferências de cidades. Em outubro teremos a Conferência Nacional das Cidades e estamos entusiasmados para avançar com propostas para o Plano Nacional de Desenvolvimento Urbano.”
Ele reforçou que a luta por moradia está ligada ao poder das cidades, especialmente para a população da periferia e do Interior, e que a discussão sobre o uso de imóveis ociosos no centro pode garantir condições mínimas de sobrevivência e dignidade.
Do movimento à política
A trajetória do MNLM também se expressa em mandatos parlamentares. A vereadora de São Leopoldo Karina Camillo (PT) contou que sua militância começou em uma ocupação, em 1999. “Comecei a organizar a luta social sem perceber que já era uma liderança. Chamei mulheres e vizinhos para lutar por água, luz, ruas e casa própria. E foi aí que eu conheci o Movimento Nacional de Luta por Moradia e me tornei militante.”

Formada em Serviço Social, ela ocupou a Secretaria de Habitação de São Leopoldo, onde implantou o maior programa de regularização fundiária do estado. “Eu só tenho a agradecer a todo o acúmulo que o movimento deu para mim e para todos os demais companheiros e companheiras e pessoas que foram atendidas pelos programas conquistados pelos movimento.”
A vereadora de Rio Grande Karina Melo da Rocha (PT) ingressou no MNLM após ser beneficiada pelo Minha Casa Minha Vida Entidades. “O movimento não luta só por moradia, mas por todos os direitos básicos. Mesmo depois de conquistar minha casa, seguimos nas ruas. Hoje, com um mandato da periferia, trabalho para fortalecer o movimento dentro do Legislativo, um espaço que não foi feito para nós, nem para as mulheres, mas onde podemos fazer a diferença.”
Ela relatou que a Secretaria de Habitação municipal foi desmantelada nos últimos quatro anos, mas desde janeiro a nova gestão tem buscado reestruturar programas habitacionais e retomar a regularização fundiária.

Cultura e mobilização
O produtor e brincante do Bloco da Laje, Francisco Macalão de Los Santos (Chico Macalão), destacou a conexão entre cultura e luta social. “É uma grande honra estar novamente junto a esse movimento. O Bloco da Laje tem 13 anos de trajetória e sempre busca engrandecer a luta do MNLM.”
Chico ressaltou que a arte vai além da experiência digital. “A cultura faz a gente pensar, ir para a rua, olhar no olho e transmitir energia ao vivo. Cultura e moradia são direitos da cidade; ocupar o espaço público também é um direito.”
Comentou ainda os impactos das enchentes de 2024: “Muita gente ainda está sem casa, sem condições de viver com dignidade. Precisamos retomar a cidade e garantir que todos possam viver com alegria e segurança”. No final, reforçou: “Moradia, alegria e dignidade são fundamentais para a vida em comunidade”.

Voz das ocupações
Ana Paula Vartman Baptista, moradora da Ocupação Maria Bonita, em Nova Santa Rita, destacou a importância do MNLM para as pessoas mais vulneráveis. “É uma luta muito importante, que deve ser ouvida por todos. Quanto mais pessoas entenderem a necessidade da população, mais vão conseguir lutar pelos direitos.”
Apesar de morar na ocupação há nove meses, Ana Paula conhece a comunidade há 14 anos. Vive com três filhos e participou da construção de 179 casas pelo movimento. “Todo dia é uma luta. Às vezes parece que estamos sozinhos, mas acordamos todos os dias para lutar, e a organização coletiva é essencial para garantir moradia digna.”
Uma nova celebração está marcada para o dia 27 de setembro, na cidade de São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre.